terça-feira, 3 de abril de 2012

Síndrome de Kartagener em um cão (Canis lupus familiaris) da raça Cocker Spaniel Inglês

P. Souza Junior 1 , S.S.R. Silva 2 , M.C. Martins 3 

1 Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Castelo Branco, RJ
2 Hospital Veterinário Ypiranga - Rio de Janeiro, RJ
3 Centro de Referência Veterinário - CRV Imagem - Rio de Janeiro, RJ

Situs inversus é uma alteração congênita rara, caracterizada pelo desenvolvimento das vísceras no lado oposto de sua topografia, como se fosse uma imagem espelhada. O situs inversus totalis (SIT) é designado quando a alteração surge com dextrocardia  − ápice  cardíaco voltado para a direita. Assim, no SIT, átrios e todas as vísceras, tanto abdominais como torácicas, aparecem no lado oposto de sua topografia habitual  (Fig. 1) (Johnson et al., 2008).




Descrito em seres humanos, cães domésticos, suínos e ratos, o SIT por vezes não promove sinais clínicos ao indivíduo e, portanto, pode passar despercebido. O SIT pode ser acompanhado de sinais clínicos quando ocorre concomitante à discinesia ciliar primária (DCP) (Salman et al., 2010). A DCP é uma alteração com transmissão autossômica recessiva caracterizada pela deficiência na motilidade de cílios e flagelos, o que torna os tecidos epiteliais ciliados propensos a lesões (Edwards et al., 1989; Torikata et al., 1991). Os pacientes com DCP podem apresentar principalmente rinossinusite, mas também bronquite crônica, pneumonia, bronquiectasia, enfisema, atelectasia, tosse, pólipos nasais, hidrocefalia, otite média com perda auditiva, intolerância ao exercício, infertilidade nos machos e subfertilidade nas fêmeas (Reichler et al., 2001; Neil et al., 2002; Stowater, 2005; Rodrigues et al., 2008).

Quando a DCP causa sinusite, bronquiectasia e está associada ao SIT, forma uma tríade denominada Síndrome de Kartagener (SK) (Torikata et al., 1991).

O diagnóstico do SIT depende de exames por imagem, como radiografias, ultrassonografia, tomografia computadorizada e/ou ressonância magnética (Reichler et al., 2001; Stowater, 2005; Rodrigues et al., 2008). Análises complementares a partir de lavados traqueobrônquico e broncoalveolar, aspirado testicular por agulha fina e espermograma permitem identificar algumas complicações decorrentes da disfunção ciliar. A confirmação definitiva da DCP depende da observação por microscopia eletrônica da ausência dos braços de dineína na mucosa nasal (Rodrigues et al., 2008).

Como o SIT não costuma causar problemas, o enfoque terapêutico reside no manejo das alterações decorrentes da DCP. Para este fim, devem ser evitadas a obesidade, a exposição a agressores do epitélio respiratório e a excitação excessiva. A respiração é facilitada pelo uso de broncodilatadores e pela normoidratação, que favorece a umidificação das secreções. Os glicocorticóides são contra-indicados devido à depuração deficiente das vias aéreas, tornando-as propensas a infecções (Hawkins, 1992). A antibioticoterapia sistêmica de amplo espectro ou por nebulização minimiza os efeitos da infecção secundária (Gomes et al., 2008).

O prognóstico da DCP, na maioria dos casos, é favorável, ainda que a demora para se chegar ao diagnóstico possa torná-lo reservado. Casos de falha terapêutica podem levar à broncopneumonia grave, com insuficiência cardíaca e morte (Gomes et al., 2008). Os proprietários devem ser esclarecidos a respeito da natureza crônica da doença, bem como para o fato de que a terapia adequada pode sustentar uma qualidade de vida aceitável (Hawkins, 1992).

Este trabalho tem o objetivo de comunicar um caso clínico de SK em uma cadela da raça Cocker Spaniel Inglês, e sua relevância está na ausência de descrição da síndrome na literatura brasileira e também por se tratar de um relato inédito na referida raça, segundo a literatura consultada.

O presente relato trata de um caso clínico de uma cadela da raça Cocker Spaniel Inglês, pelagem dourada, nascida a 2 de abril de 2006, que, desde o primeiro mês de vida, apresentava sinais crônicos de secreção nasal bilateral e tosse paroxística.

Desde a rotina pediátrica até os quatro anos de idade, foram realizados exames complementares de sangue, radiografias de crânio e tórax, cultura e antibiograma de secreção nasal e protocolos terapêuticos baseados nas alterações clínicas e laboratoriais. Nenhum exame permitiu diagnosticar a causa dos sinais clínicos e nenhuma tentativa terapêutica trouxe benefício duradouro.

Os exames radiográficos realizados entre 2007 e 2008 revelaram aumento de radiodensidade em seios paranasais, sugerindo sinusite bilateral, radiopacidade em mediastino cranial e padrão intersticial difuso pulmonar. Resultados do mesmo período de testes de cultura e sensibilidade antimicrobiana da secreção nasal revelaram crescimento de bactérias como Proteus vulgaris e Pseudomonas aeruginosa. Antibioticoterapia à base de amoxicilina com clavulanato de potássio, ceftriaxona, ciprofloxacino, metronidazol, além de gentamicina por nebulização, foram prescritos com base nos testes de sensibilidade antimicrobiana, porém sem êxito em curar os sinais de infecção respiratória. Outros tratamentos incluíram agentes anti-histamínicos, mucolíticos, broncodilatadores, anti-helmínticos, antitussígenos, corticoterapia de curta duração e nebulização com solução fisiológica 0,9%.

Durante o exame físico, a cadela apresentava bom estado geral, porém o reflexo da tosse era aumentado, espirros frequentes com corrimento nasal bilateral sero/mucopurulento e aumento de ruído respiratório tanto inspiratório quanto expiratório (estridor) na auscultação. Tais sinais clínicos apresentavam melhora episódica que coincidia com a antibioticoterapia.

Aos três anos de idade, foi solicitado exame por tomografia computadorizada do crânio e tórax com o objetivo de delimitar mais precisamente a sinusopatia e possíveis manifestações pulmonares a fim de planejar biópsia por rinoscopia e/ou toracotomia.

O exame tomográfico (Fig. 2), realizado em 8 de março de 2010, da região craniana, torácica e abdominal com aquisição helicoidal antes e após a injeção do meio de contraste iodado não iônico (ioversol 331mgI/kg) por via intravenosa, sob anestesia geral, revelou presença de tecido captante e fluido difuso bilateral e assimétrico no crânio, com tecido expandido periférico em coanas nasais, sugerindo quadro de rinite. Os ventrículos laterais mostraram-se dilatados e simétricos, a bula timpânica direita exibiu conteúdo não captante compatível com otite média/interna. Na região torácica, revelou-se o SIT, com inversão da direita para a esquerda de posicionamento de órgãos torácicos e abdominais, com veias cavas à esquerda, aorta e ápice cardíaco à direita e região fúndica do estômago à direita. Os campos pulmonares exibiram marcação reticular moderadamente aumentada, acompanhados de infiltrado alveolar com consolidação parcial do aspecto ventral de lobos craniais e médio e total de lobo acessório. O mediastino cranial estava espessado por deposição de tecido adiposo, e a traqueia torácica apresentou leve colapso de parede dorsal, compatível com colapso inspiratório.


Atualmente a paciente recebe tratamento contínuo com nebulizações com soro fisiológico duas vezes ao dia, acetilcisteína em solução oral e aerossol à base de salbutamol a cada 24 horas. A antibioticoterapia é instituída nas situações de agravamento do quadro respiratório, escolhendo-se a amoxicilina com clavulanato ou ciprofloxacina por pelo menos 14 dias.

Os sinais clínicos e tomográficos de rinossinusite com bronquiectasia associados ao SIT permitem presumir fortemente que a paciente é acometida pela SK. À exceção da avaliação da fertilidade e da motilidade ciliar, todas as demais alterações decorrentes da DCP puderam ser confirmadas por meio do exame de tomografia computadorizada helicoidal do crânio, tórax e abdômen. A hidrocefalia desta paciente mostrou-se assintomática, e os achados tomográficos de otite média/interna não encontraram correlação com sinais de síndrome vestibular periférica. No entanto, considera-se possível a infecção do ouvido médio/interno pela comunicação natural existente entre a nasofaringe e a bula timpânica pelo óstio da tuba auditiva, cujo epitélio é ciliado.

A realização das radiografias ao longo dos três anos de vida da paciente certamente demonstrou o SIT, mas, diante da natureza rara da condição, os clínicos e radiologistas imaginavam ser mais fácil ter havido um equívoco na identificação radiopaca colocada convencionalmente à direita do indivíduo do que ele apresentar inversão na topografia anatômica dos órgãos torácicos e abdominais.

Este relato chama atenção dos clínicos veterinários para suspeitarem de SK nos casos de rinossinusite e broncopatias crônicas demonstrados desde a fase pediátrica e nos quais não se obteve êxito diagnóstico em exames radiográficos nem cura após tratamento para as afecções respiratórias mais comuns de filhotes.

A ilustração da radiografia não pertence ao artigo escrito pelos autores acima citados. Ela está contida no artigo citado abaixo: 

G L G Almeida1, M B Almeida2, L X Freitas2, A C M Santos2, A V Mattos2

1. Department of Internal Medicine, Faculty of Medicine. Gama Filho University, Rio de Janeiro. 
CEP 20740-900 2. Centro Veterinário Colina, Rio de Janeiro, CEP 21931-340

Corresponding author: GLG Almeida, email: glgouvea@cardiol.br

Almeida GLG, Almeida MB, Freitas LX, Santos ACM, Mattos AV (2012). Dextrocardia and Situs inversus in a dog, 
Vet. World 5(6):369-372, doi: 10.5455/vetworld.2012.369-372







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