quarta-feira, 22 de junho de 2011

Hiperadrenocorticismo associado ao linfossarcoma hepático em cão - Relato de caso.

Introdução:

O hiperadrenocorticismo (HAC) é uma desordem endócrina que frequentemente acomete os cães estando associado ao excesso de glicocorticoides sistêmicos (FELDMAN; NELSON, 2004). A origem do distúrbio pode ser adreno-dependente (primária ou tumor adrenocortical funcional), pituitário-dependente (secundária) ou iatrogênico (administração prolongada e/ou excessiva de corticoides exógenos), sendo a forma pituitária-dependente a mais comum, afetando cães geralmente com menos de 20 kg e sendo observada em até 85% dos casos de HAC diagnosticados (ZERBE, 1999). Cães com HAC em geral são de meia idade a idosos e as raças mais afetadas são Poodle, Daschund, Yorkshire Terrier, Pastor Alemão, Beagle, Labrador e Boxer (PETERSON, 2007).

Independente da origem do HAC, os sinais clínicos mais frequentemente observados incluem poliúria, polidipsia, polifagia, aumento do volume abdominal, fraqueza muscular, obesidade, hepatomegalia, apatia, alopecia, respiração ofegante, letargia, atrofia testicular nos machos e anestro persistente nas fêmeas (FELDMAN; NELSON, 2004; PETERSON, 2007). Além da observação do histórico e sinais clínicos, exames complementares como hemograma, bioquímica sérica e urinálise devem ser solicitados para auxiliar no diagnóstico. São esperadas as seguintes alterações: leucograma de estresse, aumento na atividade sérica das enzimas alanina aminotransferase (ALT) e fosfatase alcalina (FA), hiperlipidemia, hiperglicemia moderada e baixa densidade urinária (GRECO, 2004). O diagnóstico definitivo obtém-se através do teste de supressão com baixa dose de dexametasona (FELDMAN et al., 1996; ZERBE, 2000; PETERSON, 2007).

No Brasil, o fármaco de escolha para o tratamento do HAC pituitário-dependente é o mitotano, que causa necrose progressiva das zonas fasciculada e reticular do córtex da adrenal, diminuindo o nível sérico de cortisol sem afetar a zona glomerulosa (FELDMAN et al., 1992; DeCLUE et al., 2004). Recentemente, outros países estão adotando o trilostano por causar menos efeitos colaterais, a terapêutica ser mais simples e por aumentar a taxa de sobrevida do animal (BRADDOCK et al., 2003; CLEMENTE et al., 2007; REINE, 2007). O monitoramento do paciente com HAC deve ser feito com base na normalização dos sinais clínicos e através da realização periódica de testes de estimulação com ACTH (hormônio adrenocorticotrófico) para avaliar a reserva funcional da glândula, e desta forma auxiliar na segurança do tratamento, com objetivo de evitar crises de hipocortisolismo (ZERBE, 2000; HILL et al., 2004; FELDMAN; NELSON, 2004).

O linfoma (linfossarcoma) é definido como uma neoplasia linfóide que afeta primariamente os linfonodos e outros órgãos parenquimatosos, sendo um dos distúrbios proliferativos mais comuns na clínica de pequenos animais (VAIL; OGILVIE, 2003). Diversos protocolos quimioterápicos são descritos para tratamento, pois o linfossarcoma é a malignidade mais quimiorresponsiva em medicina veterinária. A prednisona, por seus efeitos imunomoduladores, é frequentemente empregada para aumentar a resposta ao tratamento (WITHROW; MacEWEN, 2007). A ocorrência de uma doença linfoproliferativa como o linfoma em um paciente com hipercortisolismo poderia ser pouco provável em decorrência dos efeitos linfolíticos dos corticoides (FELDMAN; NELSON, 2004). Algumas vezes é preconizado o tratamento exclusivamente com prednisona em pacientes cujos proprietários não aceitam protocolos quimioterápicos mais agressivos, promovendo uma resposta de curta duração (VAIL; OGILVIE, 2003).

Relato de caso:

Uma cadela da raça Poodle de 10 anos de idade, pesando 8,3 kg e apresentando histórico de HAC de origem pituitária há aproximadamente um ano, estava sendo monitorada através de testes periódicos de estimulação com ACTH mantendo-se com o cortisol dentro da faixa de controle, entre 10 – 50 ng/mL (a meta do tratamento da síndrome de Cushing é manter o cortisol pós-ACTH entre 10 e 50ng/mL), por administração de mitotano em fase de manutenção (50 mg/kg/semana dividido em dois dias). Durante este período, a paciente apresentou um quadro isolado de hipoadrenocorticismo iatrogênico, facilmente revertido pela administração de prednisona e suspensão temporária do mitotano.

Numa determinada revisão periódica da paciente, os proprietários relataram sinais clínicos de emese, anorexia, cólicas e fadiga. Ao exame clínico, a paciente apresentava as mucosas, pele da pina e esclera levemente ictéricas, normotermia (38,4°C), boa hidratação, tempo de preenchimento capilar menor que dois segundos, freqüência cardíaca de 138 bpm, algia à palpação na região abdominal cranial e uma massa palpável próximo da região esternal, sugerindo alteração no fígado ou baço. Também foi detectada uveíte e pústulas pelo corpo, além de ter sido levantada a possibilidade do cão ter entrado em contato com ratos.

Solicitou-se hemograma, exames bioquímicos com determinação da atividade sérica da ALT e FA e urinálise com pesquisa de espiroquetas em campo escuro. Foi realizada sorologia para Leptospira spp, bem como reação em cadeia da polimerase (PCR) para a detecção de DNA de leptospiras patogênicas em amostra de urina. Um teste de estimulação por ACTH foi realizado através da administração de tetracoside (ACTH sintético) na dose de 5 μg/kg por via IV com mensuração de cortisol sérico após uma hora da aplicação da medicação.

A pesquisa de espiroquetas em campo escuro obteve resultado negativo, assim como a PCR, apesar do título de 1:100 para Leptospira icterohaemorrhagiae na sorologia. O resultado do teste de estimulação com ACTH foi de 100,8 ng/mL, afastando a possibilidade de hipoadrenocorticismo iatrogênico.

Os resultados dos exames complementares demonstraram plasma discretamente ictérico no hemograma. O perfil bioquímico apontou hipercolesterolemia, hipercalemia, um leve aumento das globulinas e aumento da atividade sérica da ALT e FA, estas duas últimas sugerindo lesão hepática. Na urinálise foram detectadas bilirrubinúria, proteinúria e densidade urinária baixa.

Foi realizada uma ecografia para investigação da origem da massa intra-abdominal. Observou-se hepatomegalia com parênquima heterogêneo, manchas hiperecogênicas difusas e de contorno pouco definido, sendo sugerida uma biópsia hepática. Os proprietários não aceitaram inicialmente a realização de BAAF (biópsia aspirativa com agulha fina), sendo acrescentados à terapêutica inicial, ácido ursodesoxicólico, doxiciclina e silimarina.

Após cerca de 30 dias, observou-se na ecografia uma redução na definição das áreas hiperecogênicas que passaram a apresentar-se de forma mais difusa pelo parênquima hepático, sendo então autorizada a realização do exame citológico do fígado (biópsia), o qual foi realizado a partir de um aspirado com agulha fina guiado por ultra-som. O resultado evidenciou um material constituído de linfoblastos alterados e em grande quantidade, compatível com linfossarcoma hepático. Após o diagnóstico de linfossarcoma, a paciente sobreviveu por mais cinco dias e veio a óbito. A necropsia da paciente não foi autorizada pelos proprietários.

Discussão:

Através do histórico e dos sinais clínicos apresentados pela paciente, inicialmente suspeitou-se de hipoadrenocorticismo iatrogênico causado pela administração contínua de mitotano (FELDMAN; NELSON, 2004). Essa hipótese foi descartada baseada no teste de estimulação de ACTH e no achado clínico de plasma ictérico, este não é esperado no hipocortisolismo.

Outra suspeita foi de hepatite causada por leptospirose, devido ao relato de possível contato com ratos e a sintomatologia desta enfermidade ser a mesma descrita na anamnese (NELSON; COUTO, 2006). O resultado da sorologia com titulação mínima indicava que a paciente poderia ter entrado em contato com o sorovar em algum momento da vida e que mantinha uma taxa baixa de anticorpos ou indicava um título vacinal. A PCR de amostra urinária foi negativa, indicando que não estava ocorrendo eliminação ambiental de leptospira pela urina. A literatura não suporta a leptospirose como uma condição indutora de linfossarcoma, não sendo provável qualquer relação entre estas afecções no presente relato.

Até o momento tornava-se evidente uma possível hepatopatia. Os testes bioquímicos apontaram a atividade sérica da ALT aumentada, caracterizando lesão dos hepatócitos (LASSEN, 2004). A atividade da FA também esteve aumentada em decorrência da colestase e do cortisol acima da faixa considerada de controle para cães com Cushing, demonstrando a existência de hipercortisolismo (LASSEN, 2004; FELDMAN; NELSON, 2004).

Apesar da faixa de referência de cortisol para cães saudáveis estar entre 60 e 170 ng/mL, o objetivo do tratamento da síndrome de Cushing é manter o paciente com cortisol pós-ACTH entre 10 e 50 ng/mL, faixa onde considera-se o paciente com um controle excelente e observa-se a total remissão dos sinais clínicos e alterações laboratoriais. O valor de cortisol da paciente em 100,8 ng/mL configura descontrole da doença, mesmo estando dentro da faixa de referência para cães normais, e indicaria a necessidade de retomada do tratamento com mitotano em fase de indução (25 mg/kg BID) caso a paciente não estivesse inapetente e com episódios de emese (FELDMAN; NELSON, 2004). Valores acima de 220 ng/mL são compatíveis com o diagnóstico de hiperadrenocorticismo (ZERBE, 2000).

De acordo com González & Silva (2006), a hipercolesterolemia na presença de icterícia, poderia ser associada à colestase, uma vez que a obstrução dos canalículos biliares impede a exportação da bile e, consequentemente, do colesterol. Contudo, hipercolesterolemia é um achado comum no HAC não compensado (FELDMAN; NELSON, 2004). A albumina e ureia com níveis abaixo do normal podem ser explicadas pela inapetência crônica, mas principalmente por insuficiência hepática, já que são sintetizadas no fígado. O nível da glicose apresentado justifica-se pelos mesmos motivos acima, pois sua manutenção é baseada na gliconeogênese hepática (LASSEN, 2004).

Segundo Fighera et al., (2002) e Morris & Dobson (2007), a hipercalemia explica-se pela ocorrência de síndrome paraneoplásica característica de linfossarcoma. Na urinálise, a detecção de bilirrubinúria grave corrobora com o diagnóstico de alteração hepática, descartando a hipótese de hemólise excessiva devido aos níveis normais do eritrograma (LASSEN, 2004). Para Shaw & Ihle (1999), a densidade urinária diminuída ocorre pelo excesso de cortisol, causando a inibição da secreção de vasopressina (ADH). A isostenúria observada na paciente poderia ser decorrente do próprio linfossarcoma, uma vez que a presença de isostenúria é um indicativo da existência de poliúria/polidipsia (WATSON, 2005). Cardoso et al. (2004), relataram a poliúria/polidipsia como um sinal clínico do linfoma canino. Apesar disso, na opinião dos proprietários a ingestão de água estava sob controle em valores inferiores a 100 mL/kg/dia. A proteinúria pode ser explicada por uma glomeruloesclerose, patologia que causa fibrose nos glomérulos e é decorrente da hipertensão sanguínea comumente observada em cães com HAC (HURLEY; VADEN, 1998).

A partir do resultado da biópsia do fígado, com linfoblastos alterados e em excessiva quantidade ficou evidente tratar-se de linfossarcoma hepático (MORRIS; DOBSON, 2007). O linfossarcoma é uma neoplasia de caráter maligno e evolução rápida, frequentemente relatado em cães e que se origina em órgãos linfoides sólidos como linfonodos, baço ou fígado (FIGHERA et al., 2002). É a neoplasia hematopoiética mais comumente relatada em cães, totalizando aproximadamente 90% dos casos de neoplasias hematopoiéticas (MOULTON; HARVEY, 1990) e 5 a 10% de todas as neoplasias de cães (CARDOSO et al., 2004). O histórico e os achados físicos dependem da localização anatômica e dos órgãos acometidos (FIGHERA et al., 2002; CARDOSO et al., 2004). Sinais como emese, inapetência e perda de peso estiveram presentes nesta paciente e foram identificados em vários cães no estudo de Cardoso et al. (2004). Sinais menos comumente associados ao linfossarcoma como icterícia e hepatomegalia estiveram presentes nesta paciente.

A existência de hipercortisolismo concomitante ao linfossarcoma pode ter sido a razão pela qual algumas anormalidades comumente associadas ao linfossarcoma não foram observadas, como por exemplo, linfadenomegalia/linfadenopatia, observada em 87% dos casos de linfossarcoma (CARDOSO et al., 2004). O cortisol em excesso provavelmente mascarou alguns destes sinais, já que é um hormônio que promove linfólise quando em excesso (GRECO, 2004). O óbito da paciente poucos dias após a realização do BAAF, não permitiu a realização de qualquer tentativa de tratamento quimioterápico.

Conclusão:

A descrição simultânea de HAC e linfossarcoma trata-se de um caso incomum, pois as duas doenças foram encontradas associadas na paciente. Como o linfossarcoma é altamente maligno e na maioria dos casos leva a morte rapidamente, talvez tenha sido possível diagnosticar a tempo as duas enfermidades em função do hipercortisolismo, pois pode ter controlado, em parte, a evolução do linfossarcoma pelos seus efeitos imunossupressores.


Paciente em acompanhamento de tratamento para hiperadrenocorticismo apresentada com queixa êmese, inapetência e fraqueza. O abdômen da paciente apresenta-se discretamente abaulado e a pelagem não apresenta alopecia ou rarefação pilosa.










Imagem ecográfica do fígado da paciente evidenciando parênquima heterogêneo e a presença de
um nódulo hiperecogênico com cerca de 1,2 cm de diâmetro (seta).





Citologia de material aspirado do fígado da paciente por meio de BAAF guiada por ultra-som
evidenciando a presença de grande quantidade de linfócitos com volume nuclear aumentado, cromatina em padrão granular e redução do volume citoplasmático (seta), recebendo o diagnóstico citológico de linfossarcoma hepático. Coloração Wright-Giemsa, aumento de 400x.



VETERINÁRIA EM FOCO
Revista de Medicina Veterinária
Vol. 7 - No 2 - Jan./Jun. 2010
ISSN 1679-5237
Éverton Eilert Rodrigues, Melina Garcia Guizzo, Eduardo de Freitas Costa,
João Pereira Guahyba Bisneto, Simone Tostes de Oliveira, Félix Hilario Díaz
González, Alan Gomes Pöppl






Um comentário:

  1. ACHO O FIM TODO ESTE TRATAMENTO AGRESSIVO PARA JUDIAR DO ANIMAL ,SOU A FAVOR DA NATUREZA SE ENCARREGAR DE NOSSO DESTINO ,UM ANIMAL IDOSO DESENCADEIA VÁRIOS PROBLEMAS . TENHO 6 CAES E JÁ TIVE VÁRIOS E SEMPRE CONSEGUI RESOLVER OS PROBLEMAS DE FORMA A MINIMIZAR O SOFRIMENTO DELES.DEUS E MINHA INTUIÇÃO TEM AJUDADO ,EU AMO MEUS ANIMAIS, MAS QUIMIOTERAPIA JAMAIS PERMITIRIA . SEI DO SOFRIMENTO EM HUMANOS COMO MEU PRÓPRIO PAI .

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