Em resultado da seleção genética realizada ao longo dos últimos 15 anos, a morfologia dos cães braquicefálicos (principalmente o Buldogue Francês, o Buldogue Inglês, o Pug ou o Boston Terrier) evoluiu para faces achatadas, amplas e curtas.
Além das má-formações vertebrais e da dermatite das pregas cutâneas, esta evolução acentuou um determinado número de desordens funcionais que, muitas vezes, os proprietários desses animais encaram como “normais”.
Podem ser de dois tipos:
De tipo respiratório
• Sons respiratórios acentuados
• Tolerância reduzida ao esforço ou ao calor
• Cianose
• Síncope
De tipo gastrintestinal
• Regurgitação de saliva em situações de stress
• Vômito freqüente.
Embora os distúrbios respiratórios tenham sido objeto de inúmeros estudos, a descrição e a análise dos distúrbios gastrintestinais (GI) crônicos associadas a anomalias respiratórias é mais recente.
Em estudo prospectivo, os autores destacaram a elevada incidência de distúrbios GI em animais apresentados em consulta com obstrução do trato respiratório superior, 97,2% nos 73 animais (na sequência de exame clínico e endoscópico). Foram frequentemente observadas lesões inflamatórias no esôfago distal, no estômago ou no duodeno, podendo estar associadas a anomalias anatômicas ou funcionais (ex.: atonia do cárdia, refluxo gastroesofágico, retenção gástrica, hiperplasia da mucosa pilórica ou estenose pilórica).
O exame histológico conduzido em 51 destes animais revelou 98% de casos de gastrite crônica. Foi estabelecida correlação estatística entre a gravidade dos sintomas clínicos gastrintestinais e respiratórios, evidenciando abordagem patofisiológica comum validada do ponto de vista estatístico.
Avaliação clínica
Quando o motivo da consulta for dificuldade respiratória, intolerância ao esforço (ou calor) ou síncope, o histórico pode revelar a existência de distúrbios digestivos associados.
Normalmente, os relatos dos proprietários descrevem intolerância ao esforço por várias semanas ou meses anteriores à consulta. Esses distúrbios respiratórios são de natureza inspiratória ou mista. Além disso, os sintomas GI estão frequentemente associados e incluem refluxo, ingestão frequente de grama, êmese em caso de excitação ou brincadeiras, regurgitação de saliva ou vômito de alimento parcialmente digerido após prolongado intervalo de tempo seguinte às refeições.
Silmultaneamente, quando distúrbios GI são o motivo da consulta, é possível identificar desordens respiratórias associadas.
Na prática, uma vez confirmada síndrome obstrutiva do trato respiratório no decurso do exame clínico é aconselhável efetuar exame endoscópico (sob anestesia geral) do trato respiratório superior e gastrintestinal, para avaliar as lesões em ambos os sistemas.
A radiografia do tórax está preconizada sempre que o exame pulmonar revelar anomalia ou quando a anamnese descrever tosse intensa ou episódios de dispnéia severa. No Buldogue Inglês é frequentemente constatada a presença de hipoplasia traqueal, o que agrava os distúrbios respiratórios crônicos nesses cães.
Achados endoscópicos
A anestesia de cães braquicefálicos requer atenção minuciosa e elevado nível de cuidados durante o tratamento.
• Dieta líquida nas 24 horas anteriores à anestesia geral
• Pré-medicação com acepromazina (0,5mg/kg IM), dexametasona (0,2mg/kg IM) e metoclopramida (0,5mg/kg IM)
• Indução rápida da anestesia geral (tiopental 5-10mg/kg)
• Entubação do animal e manutenção da anestesia com isoflurano misturado com 100% de oxigênio.
A primeira fase do exame é realizada com o animal em posição ventral, para facilitar o diagnóstico das desordens respiratórias:
• Aspecto das narinas
• Alongamento e hiperplasia do palato mole
• Aspecto das amígdalas
• Eversão dos ventrículos da laringe
• Flacidez da cartilagem aritenóideia da laringe
• Macroglossia (obstrução parcial ou total da faringe nasal pela base da língua)
• Redução de movimentos temporomandibulares.
Na segunda fase, em decúbito lateral esquerdo, podem ser diagnosticadas as principais lesões GI, distinguindo-se três tipos de anomalias em cada segmento digestivo (esôfago, estômago, duodeno superior):
• Anomalias anatômicas: má-formações congênitas ou lesões adquiridas no trato GI superior (desvio esofágico, estenose pilórica, hérnia de hiato, etc.)
• Anomalias funcionais decorrentes de alterações no trânsito GI (atonia do cárdia, refluxo duodenogástrico, etc.)
• Anomalias lesionais: lesões inflamatórias geralmente secundárias às duas anomalias acima descritas (esofagite, gastrite, etc.)
Em cães braquicefálicos, a recuperação pós operatória é bastante delicada e comporta riscos potenciais. Portanto, deverá decorrer com o mínimo de estímulos sonoros e luminosos. O tubo endotraqueal deve ser removido o mais tarde possível, preferencialmente quando o animal estiver prestes a conseguir erguer-se. A ocorrência de dificuldades respiratórias acentuadas durante a fase pós-operatória podem requerer uma traqueostomia temporária (4,9% dos casos no estudo prospectivo).
O tratamento cirúrgico, quando necessário, das anomalias digestivas detectadas durante a gastroscopia (hérnia do hiato ou estenose pilórica) nunca é efetuado simultaneamente a correção das anomalias respiratórias. Deverá ser adiado por várias semanas, estabelecendo-se entretanto uma terapia provisória com medicamentos.
Esôfago
1. Desvio esofágico: anomalia relatada em estudo efetuado com Bulldogs Ingleses. Esse desvio provoca a retenção de saliva e resíduos de alimentos, e pode explicar a salivação dos animais em situações de excitação.
Lesões inflamatórias e erosão distal podem ser associadas a um comprimento excessivo do esôfago (esôfago redundante) e/ou à incontinência do cárdia (abertura do cárdia durante a inalação, fenômeno não observado em outras raças durante a endoscopia).
Estômago
1. Presença de gastrite, frequentemente folicular: observa-se macroscopicamente pontilhado eritematoso múltiplo, visível no corpo gástrico mas também na zona antral de forma mais acentuada.
O piloro apresenta-se rodeado por pregas excessivas da mucosa, o que pode dificultar a passagem do endoscópio até o duodeno proximal. Em alguns casos, embora o animal tenha sido submetido a jejum pré operatório, o estômago encontra-se repleto de suco gástrico ou alimentos não digeridos, absorvidos até 18 horas. Previamente estas últimas observações indicam a presença de síndrome de retenção gástrica, provavelmente decorrente de razões funcionais ou anatômicas.
Duodeno
Macroscopicamente, observa-se uma coloração heterogênea, aumento da granulação da mucosa e aspecto eritematoso no duodeno proximal, com placas de Payer bastante visíveis e, por vezes, descoloridas.
Realizaram-se biópsias duodenais em 43 animais e a principal lesão observada foi a linfoplasmocitose, que afetou 42 animais (97,7%). As lesões foram de baixa itensidade em 13 casos (30,9%), moderadas em 23 casos (54,8%) e graves em 6 casos (14,3%).
Adotou-se terapêutica padrão inicial diante da detecção de lesões inflamatórias gastrintestinais durante a endoscopia, basicamente:
• anti-ácido: normalmente inibidor da bomba de prótons, omeprazol (0,7mg/kg/dia, em dose única diária).
• agente procinético : cisaprida (0,2mg/kg, 3 vezes ao dia) ou metoclopramida (0,5mg/kg, 2 vezes ao dia, com monitorização da tolerância ao fármaco).
Após obtenção dos resultados histológicos, o tratamento pode ser adaptado individualmente.
Gastrite severa e/ou duodenite com fibrose parietal: tratamento para 3 meses.
• inibidor da bomba de prótons (omeprazol: 0,7mg/kg/dia, 1 vez por dia)
• procinético
• tratamento tópico local com solução à base de fosfato de alumínio.
• prednisolona (0,5mg/kg/dia, 2 vezes por dia, com redução gradual das quantidades).
Gastrite moderada a severa, sem fibrose e/ou duodenite acentuada: tratamento para 3 meses
• Idêntico ao tratamento para gastrite severa, mas sem corticosteróides.
Esofagite distal: terapia para 15 dias, seguida pelo tratamento da gastrite associada
• procinético
• inibidor da bomba de prótons
• sucralfato (1g por dia, por via oral 2 vezes por dia, em jejum)
• sais de magnésio (1mL/kg, 3 vezes por dia, após as refeições)
• fosfato de alumínio: 1mL/kg, 3 vezes por dia, por via oral, fora do período das refeições)
É aconselhável realizar uma endoscopia de rotina após 6 meses ou menos, caso não se observe melhoria.
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Também se preconizam algumas medidas dietéticas:
Controle da quantidade, alimentos hiperdigeríveis ou hipoalergênicos para casos específicos.
Conclusão:
Estes dados demonstram que a anamnese clínica dos cães braquicefálicos deve incluir abordagem global dos distúrbios respiratórios, bem como dos distúrbios do trato digestivo superior (movimentos de mastigação, ptialismo, vômitos ou regurgitação), ainda que não se constituam reclamações do proprietário. Atualmente, já é um fato comprovado que a correção cirúrgica precoce dos distúrbios respiratórios produz melhorias rápidas nos distúrbios digestivos. O tratamento de suporte das anomalias digestivas também melhora a sintomatologia respiratória dos animais em fase pós operatória.
Veterinary Focus / / Vol 17 No 2 / / 2007
Valérie Freiche, DVM
Clínica Alliance, Bordéus, França
Valérie Freiche graduou-se na Escola Nacional de Medicina Veterinária de Alfort - França, em 1988, onde foi interna e assistente no Departamento de Medicina até 1992. A Drª Freiche empreendeu a sua própria clínica na região de Paris, e optou por se dedicar à gastroenterologia. Desde 1992, é responsável pelas consultas de gastrenterologia e fibroscopia digestiva na Escola Nacional de Medicina Veterinária de Alfort. Desempenha a mesma função clínica referência, a clínica Frégis, em Arcueil. Em 2006, mudou-se para o sudoeste de França para trabalhar nessa mesma área na clínica Alliance, outra referência. A Drª Valérie Freiche participa regularmente de conferências e cursos de pós graduação em gastroenterologia.
Cyrill Poncet, DVM, Dipl. ECVS
Clínica Frégis, Arcueil, França
O Dr. Poncet graduou-se na Escola Nacional de Medicina Veterinária de Toulouse, em 1998, onde também especializou-se em cirurgia (2001). Posteriormente, realizou internato em cirurgia, na clínica Frégis, e obteve o diploma europeu de cirurgia (ECVS - European College of Veterinary Surgeons). Atualmente, o Dr. Poncet é um dos sócios daclínica Frégis e especialista em cirurgia de tecidos moles.
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